Boa tarde, pessoal!
Transcrevo aqui o ótimo texto da Historiadora e Escritora Isabel Lustosa publicou no Caderno 3 do Diário do Nordeste sobre Millor Fernandes e Chico Anysio:(http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=1121329&coluna=1)
Chico e Millôr
Deve haver algum sentido na
partida quase simultânea de Millôr Fernandes e Chico Anysio. Algo talvez
relacionado ao senso de humor da "indesejada das gentes" que, de alguma
forma, quis rir por último.
Foram ambos, certamente os maiores em sua arte, pois o humor literário e a comédia são formas bem diferentes de expressão.
Não
sei se era Chico quem criava a maior parte de seus textos. Mas,
certamente, era na interpretação deles, em sua galeria imensa de
personagens que seu talento de ator versátil, aliado à sua capacidade
inata de fazer rir, se realizava plenamente.
Às vezes, o texto
nem era tão bom, mas a gente saboreava o prazer de ver um ator fenomenal
fazendo um tipo tão natural que até parecia com algum velho conhecido
da vizinhança. Assim a gente se acostumou a ver toda semana, na telinha:
o pai de santo baiano, amigo dos famosos; o Bozó, funcionário da Globo;
o Alberto Roberto, ator canastrão; Beto Carneiro, o vampiro brasileiro;
o Coronel Limoeiro e o político corrupto Justo Veríssimo; o Haroldo, a
bicha de língua presa que resolveu ser hétero e é que sempre convidada a
voltar para o antigo reduto por outra, a Paulete; o Silva, nordestino
que exclamava, com sotaque bem carregado: "Têrcero Mundo me dana!".
No
entanto, não se deve esquecer que há muito Chico Anysio não tinha um
programa seu. E não se pode culpar a Rede Globo por isto. Na verdade,
seu programa, graças ao prestígio de Chico junto a Roberto Marinho, até
se prolongou para muito além do tempo em que fazia sucesso. Me parece
que esse é um pouco o destino dos comediantes. Chega um tempo que o
público não consegue achar mais graça neles. Ou porque o público já não é
mais o mesmo, ou porque cansou de repetir os bordões, ou porque o
próprio artista se tornou sentimental.
Com Chico Anysio aconteceu
um pouco de tudo isto. Lembro que na última fase de seu programa ele
encerrava com um tipo de profeta falando frases que nada tinham de
humorístico. Eram mensagens morais que precisavam ser decifradas e que, a
meu ver tiravam a graça do que tinha sido visto antes.
Nada
disto diminui Chico Anysio e, agora que ele se foi, a gente fica com uma
pena danada de que não tenham lhe dado mais valor nos últimos anos de
sua vida. Alguém com o enorme talento e a versatilidade de Chico Anysio
poderia facilmente ter migrado do programa de humor para as telenovelas.
Excelente ator dramátoico que só recentemente veio a participar de uma
delas, merecia ter sido lembrado antes. Acredito que a televisão
brasileira teria ganho registros tão memoráveis quanto os que deixou um
Paulo Gracindo, por exemplo.
....
Encontrei Millôr duas
vezes. Uma para pegar originais dele que eu queria incluir em uma
exposição sobre os presidentes da República que eu organizava no BNDES e
a outra para devolver os desenhos.
Conhecendo a sua verrina
manifesta nas charges diárias do JB em que demolia durante semanas seus
alvos preferidos, temia encontrar alguém de temperamento difícil. Mas,
ao contrário, o Millôr que conheci era amabilíssimo. Conversamos
longamente sobre os mais variados assuntos. E, aproveitando a boa
disposição em que ele estava perguntei sobre alguns de seus velhos
amigos. Sobre um deles, me disse: "Fulano é assim como aquele irmão mais
novo que você tem. Você deixa a carteira de dinheiro na mesa dando
sopa, ele vai e leva. Você tem uma filha mocinha, menor de idade, ele
vai e transa..". Era um descrição que casava bem com a imagem do dito
fulano. E não havia ninguém melhor para fazê-la do que Millôr que o
conhecia há tantos anos.
Ele foi, certamente, a maior
inteligência do humor brasileiro de todos os tempos. Suas pequenas
construções frasísticas resumiam da forma mais sintética possível uma
concepção filosófica sobre a natureza humana. Mas esta concepção não era
cética como a expressa, por exemplo, no humor machadiano. Era tão
pessimista como a de Jonathan Swift.
Aliás, Millôr tinha com
Swift também a semelhança no humor ferino e demolidor, que não perdoava
seu alvo, vasculhando e denunciando seus defeitos, suas fraquezas, suas
vilanias. Ser escolhido como tema de suas charges era se ver massacrado
com tanta persistência que, tal como acontece muitas vezes, em situações
assim, sua vítima podia até vir a obter a simpatia do público leitor.
Millôr era engraçado até quando era perverso. Ou, aliás, era engraçado e
se conservou assim até o final até porque continuou perverso em seu
humor.
No entanto foi o artista inspirado também de tiradas de
humor delicadas como na "Poesia matemática" e na crítica inteligente que
fez à substituição dos hábitos de leitura de livros impressos sobre o
papel pela leitura dos mesmos nas telas dos computadores. Em texto que
continua atual (tão atual que chegou a ser plagiado em vídeo em espanhol
hoje popular na internet), intitulado "Um novo e revolucionário
conceito de tecnologia de informação" ele descreve o que chama de "Local
de Informações Variadas, Reutilizáveis e Ordenadas", cuja sigla é:
L.I.V.R.O."
Mas, geniais mesmo foram suas máximas, das quais
seleciono alguns para fechar essa coluna em que me despeço de dois dos
meus ídolos da adolescência e da juventude: Chico Anysio e Millôr
Fernandes.
Como são admiráveis as pessoas que não conhecemos
muito bem./ Ser pobre não é crime mas ajuda muito a chegar lá./ Já que
não conseguimos aumentar a grita dos descontentes, precisamos pelo menos
diminuir o sorriso dos satisfeitos./ O crime não compensa. Mas de que é
que vivem os juízes do Supremo Tribunal?/ Antigamente os animais
falavam. Hoje escrevem./ Todo dia leio os avisos fúnebres dos jornais;
às vezes a gente tem surpresas agradabilíssimas./ Feliz é o que você vai
perceber que era algum tempo depois.
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